A tendência normal de quem se encontra numa situação de clausura é deixar tudo para amanhã. A actividade começa a tornar-se fastidiosa e o tempo parece que sobra.

Os latinos tinham uma outra palavra para designar o que hoje nós, os neolatinos, chamamos em português de amanhã (mañana, em castelhano; l’endemà, em catalão; deman, em occitano; demain, em francês; domani em italiano; mâine, em romeno, etc.). Essa palavra era: cras. Não conheço, mas invejo quem conhece, a história de como desapareceu o termo. Das duas, uma: ou pertencia ao léxico do sermo eruditus, a maneira distinta de falar das elites romanas cultas, e, por isso, nunca desceu aos hábitos de fala das classes populares ou dos povos romanizados; ou entrou em desuso, sendo substituída por uma expressão catacrética, qualquer coisa como "na próxima hora matina".

A matina (latim: matutina) era a primeira parte do dia, a que começava no seu alvor. O deixar para outro dia, ou, como dizemos coloquialmente, o adiar, era coisa para não deixar para muito tarde, era coisa para uma pessoa se levantar cedo e fazê-la logo de madrugada. O que é uma decisão de bom senso pois toda a gente sabe que ao fim do dia temos as reservas físicas e mentais esgotadas e que, após um sono reparador e o erguer cedo, já matutamos bem e estamos em plena forma para realizar com sucesso a mais complicada das tarefas.

Não foi travestido de epopeia que evoluiu o significado do termo: o ideal epicurista cedeu o lugar ao laxismo hedonista. Adiar, sine die, como se acrescenta pleonasticamente nos tribunais - o que muito convém quando o presumido inocente vem da nata da sociedade e é autor de grandes canalhices - passou a significar passar para um dia indefinido. O "deixar para amanhã", um amanhã alargado de 24 horas, tem o significado actual de "deixar sempre para amanhã".

Quando eu era pequenino, adiar, ou deixar para amanhã, era um sinal da fraqueza moral chamada indolência, e essa fraqueza resultava, por sua vez, do esbanjamento de uma como que energia vital: a preguiça. O assunto era razoavelmente tratado com as técnicas do chicote e da cenoura e não havia justificação de atrasos para nenhum atraso de vida. Lá nos safávamos o melhor que podíamos e o melhor dos resultados do sucesso era um sentimento muito acalentador de mérito. Hoje, os tempos são outros, são tempos, como diriam os meus avós, de abastança, e as posturas humanas são pintadas com cores mais ténues e suaves e tratadas com maior brandura.

De abastança para alguns, para uma reduzida elite. A maioria, que são os desgraçados de hoje, nem tem trabalho, nem tem onde cair morta. E é num contexto de elitismo que ressurgem as palavras outrora adormecidas das elites romanas. E, assim, reapareceu surgido do nada o velho e aristocrático cras na forma verbal procrastinar: deixar para amanhã, já não de uma forma plebeia, mas com um certo e discreto charme.

O curioso é que a palavra não veio sozinha. Como um bom produto a lançar nos mercados da nossa sociedade consumista, teve de ser apresentada através de uma embalagem que passe uma imagem de luxo e de vida desafogada. Para além do nome sonante e da imagem vistosa, deve vir embrulhada em embalagem de luxo e apresentada por várias descrições como a habitual panóplia de certificações e instruções, garantias e apoios institucionais.

Preguiça? Qual preguiça, nada disso! asseveram os psis de todos os contornos, sejam científicos, paracientíficos ou anticientíficos. Uma dificuldade, apenas, em controlar as emoções. As emoções, veja-se, a nova panaceia para justificar vícios e anormalidades.

Cá para mim, que sou da escola antiga, procuro controlar as minhas emoções com compromissos, trabalho, disciplina e resultados. As que não conseguir controlar, paciência, que saiam e expludam com algazarra e fulgor. As que nos enrolam a vida que fiquem para amanhã ou para S. Nunca. Temos direito a uma vida, e só uma, e o dia de hoje é o único que conta. Não dá para viver pendurado no a fazer e no por fazer.

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Mas, a tendência normal de quem se encontra numa situação de retiramento é perder o horizonte de referências temporais. O confinamento amolece o tempo.

 

[ Permitam-me um aparte: isto do adiamento não é coisa exclusiva dos indivíduos. Existe também em termos institucionais e tem um nome: a burocracia. Talvez venha a ser assunto num próximo postal. ]


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