No meu modo de ver as coisas, a espécie animal a que pertencemos, a espécie homo sapiens, criou ao longo da sua história uma supra-realidade, uma realidade-bolha, que transborda a sua realidade material e biológica: a 'humanidade'. A humanidade, como a entendo, não é a espécie biológica, mas uma camada virtual que

envolve o substracto biológico com os produtos mentais elaborados nos e pelos cérebros individuais nas suas trocas nos ambientes físico e social. A humanidade assim entendida, não é uma 'coisa' imutável, forjada sub specie aeternitatis: a humanidade do humano é, em sentido colectivo, uma projecção para toda a espécie humana, portanto sempre inacabada, sempre em processo; e, em sentido individual, nem uma vida chega para compreender o que há de humano no presente de cada um de nós, que está aquém e além de cada um de nós.

A humanidade transborda, assim, tanto a espécie como o indivíduo e afecta a realidade 'exterior', humaniza as coisas-em-si em coisas-para-nós. Tudo à volta é humanizado: a paisagem, os lugares, os seres. O mundo é a casa (domusdomui) da 'humanidade' e todos os seres abrangidos pelo mundo são seres domésticos: as matas, as árvores de fruto, as plantas hortículas, os jardins, o gado, os cães, os gatos, as pulgas e os micro-organismos que nos fazem viver e morrer. Cada vez mais domesticados, cada vez mais humanizados. "Tudo está cheio de deuses" como teria afirmado Tales de Mileto.

Esta evolução foi operada, em larga medida, na era que se convencionou chamar a 'revolução do neolítico' e "das civilizações dos grandes rios", o período da evolução humana em que foram inventadas a agricultura e as cidades. Desde essa altura, os seres humanos têm aprendido a distinguir entre o que surge espontânea e naturalmente na natureza, as entidades naturais, e o que surge por artifício e cultivo praticados pelo homem e os seus utensílios-máquinas, as entidades artificiais ou culturais. A agricultura é, segundo a etimologia latina, a cultura do campo (ageragri). Esta actividade de cultivo (colo, colere, colui, cultus) transforma os seres naturais, que se apresentam no estado selvagem, na selva, na estepe, no deserto, no mar, em seres cultivados, nos campos lavrados, nas pastagens, nas matas, nas hortas, nos jardins, nos pomares, nos viveiros e nas estufas. Inseparáveis da agricultura, nasceram as cidades, resultantes provavelmente da necessidade de congregar esforços, reforçar os laços cooperativos e de solidariedade ensaiados no período anterior de recolecção, de organizar a coesão social e a divisão das tarefas, de educar (ou cultivar) os mais jovens (puericultura, pedagogia) no sentido de uma maior integração e de subordinação das pulsões individuais aos interesses do grupo (civilidade, democracia). As cidades viviam ao lado das culturas e eram centros de organização, de trocas, de aprovisionamentos e de ofícios.

 

A revolução industrial das últimas centúrias introduziu uma cisão no conceito de 'cultura', separando o 'campo (ager, agris; rus, ruris)' da 'cidade' (urbs, urbis) e dando origem à oposição cultura rural-cultura urbana. A cultura urbana foi caracterizada como sendo moderna em oposição às culturas antigas ou clássicas. Foi a era do comboio e dos paquetes que nos traz a lembrança de textos literários maravilhosos como a Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz. Mais tarde o carro a motor, as autoestradas e o avião levaram à desertificação progressiva das aldeias, às migrações em massa, internas externas, e à consolidação das magalópoles. A desertificação dos campos e as grandes desflorestações levaram a agricultura a converter-se em agro-indústria, muitas vezes com contornos criminais.

 

Recentemente, a revolução digital operou a cisão, talvez não a derradeira, entre o 'real' e o 'virtual'. É cedo para fazer a avaliação deste caminho da humanidade. O balanço aponta provisoriamente para um desequilíbrio que favorece a "humanidade" contra o homo sapiens, os deuses contra a natureza, o jogo contra a acção e o global contra o local.  A evolução não pára, continuará aqui ou noutro lugar. Mas para nós poderá ser apocalíptico (alguém disse que este século será o século de deus e há sinais preocupantes que bem poderá sê-lo). Redescobrir o campo é a nova liturgia, a liturgia antidivina, o novo culto da natureza e do regresso às origens, mesmo que envoltos em mitos. Porque o mito, a palavra poética-pensante, é a última, e provavelmente a única, maneira de humanizar o desumano da "humanidade"..

 

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