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Gatos e outra bicharada

 

"Ahi quanto a dir qual era e cosa dura...”

in O Tremontelo

14 de fevereiro de 2006

posted by Perdido @ 20:17

 

No início, era apenas um amontoado de matagal, desorganizado, sombrio, atulhado de espécies silvestres inóspitas, que não apresentava outras referências que não a escassamente entrevista marcha milenar do Sol.

Ano e meio passado, havíamos já desbastado, com o trabalho dos sábados, silvas com caules da grossura de um pulso, vinhedo espontâneo, tentacular e trepador, e roseiras bravas, que floriam na Primavera como um manto branco sobre as árvores; havíamos sulcado os primeiros caminhos – referências outras que não a marcha milenar do Sol!

A certa altura apareceram as primeiras formas, quadrículas rigorosamente uniformizadas, curvas suavizadas, limites, sentidos – uma mão cheia de utilidades e significados, onde antes houvera apenas esquecimento.

Ano após ano, foram aparecendo as cores, uma tela de matizes fortes, um pontilhado de tons certeiros e contrastes acentuados.

Recentemente, obra de um projecto de engenharia arrojada que quase dava desastre financeiro, brotou a água, jorrando barrenta, espumosa, gorgolejante. E foram construídos o laguinho, o charco, o areal.

A bicharada apareceu, grandes e pequenos, peludos ou de carapaça quitinosa. Primeiro, o An Jie, elegante, inteligente e bonacheirão. Depois, a indescritível Julieta, siamesa de pelo ébano à mistura com um cenoura amarelento, certamente do presumível pai, o gatarrão anafado do vizinho Paulo. No ano passado, o An Jie desapareceu, a Julieta voltou grávida, deu à luz quatro rebentos, dois cinzentos e dois cremes. Sobreviveram dois: o Tigre, de pelo cinzento riscado, pequenino, afoito, amigável; o Areias, creme, grandalhão, reservado e afastadiço.

E bicharada de todo o tipo, aqueles seres minúsculos cujo destino é perecerem sob o peso marcial da botifarra urbana. A passarada, a bebericar a água do lago. Os bandos de perdizes, às dúzias, a fazerem-se à pista como loucas até largarem em voo sossegado em direcção a outras paragens. Um dia descobri um ninho das ditas, uma obra de paciência e bom gosto, uma boa dúzia de ovos dispostos em dois círculos concêntricos, rigorosamente ordenados.

O dia passa-se bem, mas depressa. Vem o pôr-do-Sol com a sua beleza majestosa e serena, onde irradiam ao mesmo tempo a luz e a escuridão.

A noite, carinhosamente, recobre todas as coisas com o seu manto de escuridão. Ouve-se mais intensamente a presença dos insectos e dos pássaros nocturnos.

Este ano fizemos lá casa. Já dá para passar o fim de semana.


Deixem-me, então, explicar como tudo começou:

Estava um pouco na moda ainda. A ideia resumia-se a comprar a preço de saldo um relativamente extenso terreno ... no Alentejo. “Então, já compraste o teu monte?” - tornou-se o cumprimento habitual daquela época. Conforme cumpria à monotonia do assunto, a parte informativa da conversa resumia-se à distância a Lisboa, ao número de hectares da propriedade, ao estado da estrada que levava ao casario em degradação, ao ter ou não ter poço. Escalar a compra de uma série de bugigangas com terminação habitual em “or”, como o gerador, o tractor e quejandos, era o sintoma daquela doença denunciada por Eça e que consiste em levar todo o conforto da Cidade para as Serras.

É ponto assente que muita gente das nossas relações já tinha comprado o seu monte no Alentejo. Possuir um monte conduzia de imediato àquele estado de espírito de quem já plantou uma árvore, escreveu um livro ou fez um filho. Embora tivéssemos feito um filho (eu já ia, em bom rigor, no terceiro), e a minha mulher tivesse escrito um livro, pesava-nos no nosso ser mais íntimo aquela falha original de não ter um monte no Alentejo.

Ouvia dizer que os montes para comprar já escasseavam no Alentejo. Haver, havia. Mas não como fora antigamente, aos preços da uva mijona...

Voltei toda a minha atenção para um terreno na Beira Alta com o requisito de ter uma casinha toda de granito, com dois andares, a adega com lagar e largos tonéis e a vasta cozinha com forno e lareira no piso térreo, rodeada do palheiro, da pocilga, dum estábulo para as cabritas ou ovelhas. À frente e aos lados, a vinha, uma pequena horta e árvores de fruta, com uns poços e pequenos estanques cheios de rãs a coaxar a coberto do lodo verde e viscoso. Na planície à frente da casa, até ao rio flanqueado por choupos e ulmeiros, um vasto terreno para cultivar milho e feijão de sequeiro. Nas traseiras, um pinhal frondoso a alargar-se pelos montes acima até ao horizonte. À noite, haveria de ouvir à luz das estrelas a cantata dos grilos e das cigarras.

Não era invenção: a imagem veio-me da infância, do que me resta das memórias de há meio século da casa dos meus avós maternos. Procurei ainda, com a ajuda da prima Ilda. Mas nada apareceu que correspondesse à imagem que me ficara da infância. Os preços reflectiam os custos da interioridade. E ficava longe! Quando a distância da viagem aumenta, diminui a duração da permanência, aumentam as despesas de deslocação, reduz-se a frequência das visitas e aumenta o custo da manutenção: triste sobe e desce contabilístico em que, somados os inconvenientes, se vêm sumidos os benefícios.

Alternativas não faltavam desde que, obviamente, não fosse o Ribatejo: planícies extensas com toiros e campinos, toiradas e marialvismo? Nunca na vida!

Acontece que o mano Luís tinha descoberto, na variante da EN 114 que leva do Cartaxo a Rio Maior, lá para uns recônditos cantos do concelho de Santarém, umas antigas vinhas retalhadas por heranças no meio de uns pinhais muito aprazíveis. Encarregou-se de arregimentar uns quantos amigos com pé de meia e lá compraram uns quantos terrenos em que se fixaram. Com o tempo, (prometo que voltarei a este assunto mais tarde) foram implantando as infra-estruturas indispensáveis a um mínimo de comodidades – electrificação, canalização de água, arranjo de caminhos, iluminação, caixas de correio – e lançaram-se na construção das suas próprias moradias.

Bem me aliciou, mas o que vi não me agradou: ou porque o terreno era grande demais, ou demasiado reduzido, ou porque lhe passava em cima uma linha de alta tensão.

Passou-se algum tempo e acho que o Luís já não alimentava grandes esperanças de que alguma vez pudesse vir a interessar-me por Vale de Moinhos, nome que, segundo rezava nos mapas antigos, era dado àquele pedaço de terras. Foi nesse estado de espírito que me falou de um terreno, há muito deixado ao abandono, lá para os limítrofes da zona em questão, e que, estando tão afastado da mão do homem como do pensamento de deus, se tinha convertido num emaranhado novelo de silvas. Anuí. E fui.

”Emaranhado novelo de silvas” não é figura de retórica. Qualquer ponta por onde se lhe pegasse, qualquer rarefacção de matéria que permitisse a passagem de um homem, haveria de o lancetar várias vezes na face, nas mãos, nas pernas, em qualquer parte do corpo menos protegida por vestuário resistente. Aprendi mais tarde que trabalhar ali só de botas, com calças e com luvas de pele de porco, que apesar de extremamente resistentes estariam feitas num fanico em menos de um ano.

À margem do silvedo havia uma estreita nesga de terreno orientada de sul para norte com um capim tão alto que haveria de encobrir qualquer animal, presa ou predador, de África. Em suma, já que tanto obstáculo se interpunha entre o olhar e o objecto a ser visto – o terreno – havia que recorrer, para o ver, ao olhar da imaginação.

É indescritível o que vi. Não sei se o Luís me ouviu balbuciar: “é este!”.

 

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