Continuação das conversas com gatos (V)

in O Tremontelo

2 de fevereiro de 2007

posted by Perdido@0:48


 

- Depois da nossa conversa, andei a pensar...

- Andaste a pensar, felpudo?

- Andei a pensar na forma estranha como as ideias se formam nas cabeças dos humanos.

- Explica-te lá.

- Vocês pensam muito a realidade do mundo, da natureza, contando histórias.

- Mais ou menos. Chamamos mitos.

- Pouco me importa, são só palavras! Eu não uso palavras quando comunico contigo. Mas percebo que ficas mais calmo, quando escolhes uma palavra, e outras vezes ficas muito excitado, à beira de perderes as estribeiras, se escolhes outra. Não percebo a diferença pois acho que estás a pensar na mesma coisa... Ainda pensei que fosse defeito teu, mas já verifiquei que essa é uma característica comum do teu género.

- Tens razão. Mas olha que duas palavras nunca significam exactamente a mesma coisa.

- Achas? Quase me parece que defendes que é o encadeamento das palavras que origina o pensamento. Para mim, as palavras são apenas os sons muito complicados que os humanos emitem para comunicar. Vê lá tu que, só para te agradar, ando a miar muito mais. Quando andas para aí todo compenetrado a podar as sebes ou a apanhar ervas e não me ligas nada, basta eu miar uma parvoíce qualquer para ficares logo todo interessado. Depois, falas, falas. Vou-te dando uns miados de vez em quando, sobretudo quando deixas de me fazer festas no pelo. Já descobri umas toadas que funcionam muito bem contigo.

- Manipulador, interesseiro!

- Vês? Se estás irritado comigo, devias arranhar-me. Mas tu, não. Mandas-me com palavras. Acalma-te, pois, e diz-me lá qual é a diferença entre uma história e um mito.
- Bem, um mito quer dizer história em grego.

- Pois.

- Não me interrompas! Mas não é bem a mesma coisa.

- Não te estou a interromper.Estou, aliás, muito curioso. Vá!

- Mito é uma palavra que já não se usa muito, é muito antiga. Quando se usa esta palavra queremos expressar a ideia de que a história já foi engendrada há muito tempo e que se refere a acontecimentos muito antigos ou, mesmo, intemporais. Participam nestes acontecimentos tanto homens como deuses. E até animais, mesmos os ranhosos como os gatos.

- Passe o comentário, não é?

- Os mitos compõem-se geralmente de duas partes, mesmo que a segunda não esteja expressa: o enredo da história e a moralidade da história. As histórias não são contadas, porque sejam verdadeiras ou bonitas: as histórias são contadas para que se possa extrair uma lição. Um velho contador grego de mitos, o Esopo, acabava sempre assim as suas histórias: "ó mütos dêloi óti...", ou seja "a história mostra que..." Os mitos à volta dos deuses contêm uma lição tácita: Ou referem-se às origens e aos fins, ao valor ou às consequências das acções dos humanos, a conflitos de interesses, a qualquer coisa. Mas nada fica expresso, de modo a que cada ser humano possa interpretar o seu significado de uma forma pessoal. Nem sempre as coisas são assim. Devido à apetência dos humanos de manipular o pensamento, as emoções e as escolhas dos outros humanos, a maior parte das sociedades autorizou o aparecimento de uma classe social de intérpretes oficiais cuja missão é definir a interpretação correcta e única autorizada dos mitos e das fontes da revelação. À imagem e semelhança de deus, que separou a luz e as trevas, os intérpretes separam a ortodoxia das heresias.

- E como aparecem aí os outros animais?

- Os animais aparecem a falar.

- Ridículo!

- Quando os mitos gregos foram traduzidos, primeiro para latim, depois para romance, passámos a chamar-lhe fábulas.

- E já vão em três as palavras para o mesmo. Vocês deviam era experimentar dormir mais umas horas durante o dia.

- Claro que foi preciso encontrar mais uma palavra, pois não vês a diferença?

- Não.

- Animais que falam...

- E daí?

- Em latim vulgar havia duas palavras para dizer "falar"...

- Deixa-me rir.

- E as duas palavras eram "parolare" e "fabulare". Desta última derivaram as palavras portuguesa e asturiana "falar", a palavra aragonesa "fablar" e a castelhana "hablar". Noutras línguas novilatinas usava-se mais a primeira. Daí resultaram o "parlare" italiano, o "parrari" siciliano, o "parlar" catalão e o "parler" francês.

- Divertes-me imenso. Queres com isso dizer que as fábulas apareceram do lado de cá dos Pirinéus, do lado dos fabuladores? E que do lado de lá, do lado dos parladores, apareceram as párulas?

- Querias dizer parábolas... Mas não, foi exactamente ao contrário: as fábulas, onde os animais falam, apareceram do lado dos parladores, como tu dizes. Porque os animais, mesmo quando falam a mesma língua dos humanos, essa fala tem que ter outro nome. Do lado de cá, os humanos falam e os animais palram.

- Disparate! Mas voltamos aos mitos, está bem? Explica-me porque é que a mesma história é contada uma vezes de uma maneira, outras vezes de outra, mas é sempre a mesma: Mithra, Jesus, blá-blá-lá...

- São histórias de religiões diferentes.

- Sim, já me explicaste isso, mas continuo sem entender.

- E não entendes o quê?

- Ora, não entendo para que querem tantas religiões, não entendo porque é que cada religião quer ter a sua história, não entendo o porquê de tanta conversa.

- Se tiveres paciência, explico-te.

- ...

- Não são as religiões que fazem histórias diferentes porque as religiões não fazem histórias. São as histórias que fazem as religiões. As histórias contadas nos livros judeus, livros que em grego se diz "biblia", deram origem à religião judaica e a várias seitas judaicas, ao cristianismo nas versões ortodoxa, católica e reformista e ao maometanismo. Isto para ser breve, porque as divisões e sub-divisões, para usar uma expressão da bíblia, são mais numerosas do que as areias do deserto ou as estrelas do firmamento. Cabe aos rabinos, aos padres e, de uma maneira geral, aos intérpretes dos grandes mitos da humanidade compreender e revelar o significado oculto dos mitos. Daqui é que surgem as religiões: verdade única e quem não é por nós é contra nós... e corte-se-lhe a cabeça.

- Uf!

- Ah, pois é!

- Olha que percebi tudo: irra que vocês são frescos!

- É assim! Os persas tinham lá a sua religião, não sei onde é que a foram buscar, mas sabiam, como qualquer povo conterrâneo desde o Atlas até às montanhas da Índia, quando era e o que representava o solstício de inverno.

- O tal dia de Natal?

- Isso mesmo.

- A questão é que o Mithraismo contaminou as legiões romanas...

- Sim. E daí?

- É que o cristianismo primitivo também contaminava as classes trabalhadoras do império - os escravos, os servos, alguns patrícios mais conservadores das velhas virtudes republicanas - e era um movimento relativamente incipiente e, portanto, muito moldável.
- Sim?

- Mas não acaba aqui: o culto de Isis e Osiris estava bastante arreigado na aristocracia romana. Ora acontece que o império estava cheio de problemas e a arrebentar pelas costuras pela pressão exercida sobre as fronteiras pelos estrangeiros, os "barbaroi".

- Três religiões? Não é o que vocês humanos chamam um saco cheio de gatos?

- Foi o que pressentiu Constantino, um imperador romano. Como todos os imperadores, havia feito carreira militar; por isso, tinha prestado culto a Mithra. Mas sabia o peso e a influência do cristianismo nas classes produtivas sempre dispostas à rebelião. O patriciado e os aristocratas voltavam-se para Oriente. Para unificar o império, preciso seria amalgamar as religiões, o que era fácil porque elas tinham sempre algo que se podia pôr em comum, o culto da mãe dos deuses e do seu filho o deus solar. Constantino criou essa religião: abraçou o cristianismo e introduziu-lhe inúmeros elementos das outras religiões. Para criar uma religião verdadeiramente unificada e global ("católica") e acabar com as inúmeras dissensões entre os cristãos convocou um concílio para Niceia onde se definiram para a eternidade os dogmas do novo cristianismo.

- Então em que consistiam esses traços comuns desses cultos a que te referiste?

- Bem, já sabes. É aquilo que tu achas ser a mesma história quando as diversas histórias se mostram diferentes. No solstício do Inverno nasceu um menino que era filho do espírito de deus e de uma virgem humana. Vários sinais celestes atribuíam profeticamente grandes poderes ao menino o que pôs em pânico os poderes da altura que decretaram o puericídio generalizado. Os pais fugiram com ele para o estrangeiro. Reaparece mais tarde, é tentado e resiste aos poderes malignos. Faz milagres para ser aceite e seguido pelo povo. É morto,ressuscita, desce aos infernos e sobe ao céu.

- Mas disseste que Jesus não tinha nascido no solstício do Inverno.

- Pois disse. Mas com jeitinho passou a ser. E com jeitinho reescreveu-se, mais uma vez, a história do deus sol. Para ser contado todos os anos no Natal, como já era desde o princípio do mundo.

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