Conversas com gatos (I)

in O Tremontelo

29 de junho de 2006

posted by Perdido@23:47

 

– Anda a cair-te o pelo, humano?

– Cala-te, ó piolhoso, que tens a ver com isso? Não estejas preocupado que não é nenhuma pelada; nenhum humano me ferrou a dentuça, se é nisso que estás a pensar.

– Ummh! Pensei que estivesses doente: anda-te a encolher essa coisa a que chamas roupa, cai-te o pelo, falas sozinho… e andas a dar-me menos comida.

– É do Verão, ó meu obtuso. Se te pusesse mais comida, não a comerias toda. Seria atacada pelas formigas, e lá ficava a estragar-se! 

– E não tens mais latas lá em casa? E estás sempre a trazê-las do carro. Porque é que te armas em sovina?

– E és tu que vais trabalhar para ganhar o dinheiro? Pensas que as latas caem das árvores?

– Deus dos ratos! Ainda bem que não. Olha se em vez das bolotas me acertasse uma lata na cabeça? Bom, já te disse que dinheiro e trabalho são coisas que não me entram na cabeça. São conceitos adequados para os humanos e os cães e não quero adiantar mais conversa que isso do trabalho põe-me o pelo todo de pé! E a propósito: o teu pelo, cai-te porque é Verão?

– Esse é outro conceito que também não vai entrar nessa cabeçorra oca, mas vou tentar. A barba não me cai, nem o cabelo: sou eu que a tiro quando chega o Verão. Com um objecto parecido com a faca de mato rapo a barba nesse dia e nos dias seguintes. O cabelo é mais difícil. Tenho que pedir a uma pessoa, que se chama um barbeiro, que mo corte; e depois vai crescendo aos poucochinhos.

– Enganas-te, percebi como é que o fazes. Mas não me explicaste é porquê.

– Ora ai está, é nesse aspecto que não vais perceber tudo. Dá-me atenção: Por um lado, a pele está mais exposta ao sol, o que é saudável: respira melhor e ajuda a fabricar a vitamina D; ando mais leve e não tenho tanto calor. Por outro lado, é um ritual que obedece a um ciclo anual: acontece todos os anos no solstício do Verão…

– E voltas a deixar crescê-la no equinócio do Outono… Já percebi. Mas porque chamas a isso um ritual, não é apenas uma data útil que convencionaste para te ajudar a tratar da tua higiene? Explica-me, e não te faças rogado, que isso de rituais percebo eu!

– Presunçoso! Tu não és um ritualista, és um gato neurótico, obsessivo e supersticioso, que anda sempre a esconder patas de coelho nos ramos das árvores.

– Escusas de tentar ofender-me que sou completamente indiferente aos teus remoques. Só estás a ganhar tempo para arranjares uma explicação atabalhoada para essa do ritual.

– Então espeta bem esses ninhos de pulgas que tens na cabeça e dá-me atenção:  Há uns milénios a esta parte os humanos temiam, amavam e estudavam a natureza procurando compreender a vida e a morte, o dia e a noite, a felicidade e o infortúnio. De observação em observação, com o acumular da experiência, concluíram que o tempo tem um movimento circular e que os eventos sucedem-se ciclicamente numa ordem pré-determinada. E que o mesmo sucede tanto na ordem natural, como na ordem sobrenatural, isto porque os deuses também renascem, amadurecem e morrem.

– Não vejo ainda qualquer ligação com os teus pelos... ou será que também renascem, amadurecem e morrem?

– Quente, muito quente! Estás com os bigodes mesmo em cima da coisa. O Sol, que é a figuração do Filho da Senhora, nasce no solstício do Inverno, o equinócio da Primavera é o meio termo do crescimento como o do Outono o é da decrepitude. O solstício do Verão representa a sua maturidade; o do Inverno, a morte e o renascimento. É por isso que os solstícios são celebrados com as fogueiras.

– Com as fogueiras? Passaste-te ou quê?

– As fogueiras têm a ver com o sol.  As árvores fixam a energia solar através da fotossíntese. Numa fogueira, a lenha, a madeira que é tirada das árvores, arde, repetindo a actividade solar. Os humanos então reúnem-se em círculo e saltam sobre as fogueiras para reavivar o fogo solar.

– Vocês conseguem complicar tudo. Nós preferimos o calorzinho para dormir.

– É! Cada um é como é! Os humanos desenvolveram um cérebro que se comporta assim: descobre facetas da realidade e converte-as em ideias para memorizar o conhecimento assim adquirido; depois, descobre pontos de contacto entre as ideias e encadeia-as umas nas outras como as tiras da BD. Foi assim que apareceram os mitos e as teorias.

– Nós fazemos algo de muito parecido, mas baseado nos cheiros ...

– Pois... Então, como te estava a explicar, as fogueiras são festas do ciclo solar muito antigas. Dessas festividades, só restam hoje o pinheiro do Natal e as fogueiras do S. João com as queimas das alcachofras.

– Mas essas não são festas cristãs?

– Sim. Como os monoteístas não conseguiram erradicar do povo a afeição pelos cultos pagãos, converteram-nas em festas suas. Eficaz e barato, não te parece?

– Vocês e o monoteísmo, e o monarquismo, e os monopólios... Quando é que crescem, ganham a vossa independência e aprendem a viver em comum como animais civilizados?

– Adiante! A essência da festa é a representação: através do culto representamos aquilo que queremos celebrar. Representar significa tornar presente o que está ausente, substituir o representado pelo seu símbolo.

– Isso faz todo o sentido, também usamos expedientes desse tipo ... E onde é que aparecem os teus pelos?

­­– Ok!  Represento o ciclo solar com o aparecimento e desaparecimento da barba. Luz e sombra. Agasalho e frescura. Velhice e juventude.

– Safaste-te bem com essa explicação. E já agora explica-te porque é que a tua roupa encolhe no Verão?

– Por razões práticas: uso calções no Verão para ficar com as pernas à fresca, no Inverno uso calças, que são mais compridas, para me aquecer.

– Não gosto nada disso. Com os teus calções obrigas-me a encolher as unhas quando me penduro nas tuas pernas para me coçares a cabeça.

– Então, andaste aí distraído durante uns tempos com o teu blog, não é? E agora usas-me para tapar o buraco. Saíste-me cá um safardana!

– Bem!... Quer dizer…

­– Não queres dizer nada. Queres é ganhar tempo até veres como é que te vais safar. Tens tanta vergonha nessa cara rapada que até pareces um gato.

– Se isso é um elogio, aceito-o. Vejam bem as coisas que eu aprendo com este gato sem moral!

­– Então não me dizes, está bem. Cá para mim, andaste um mês com o cio a percorrer os telhados da tua cidade à caça de humanas.

– Já te disse para não te meteres nesses assuntos, ó abelhudo! Além disso, dá para ver que não percebes nada de humanos. As coisas não funcionam assim.

– Tá bem, tá bem. Já te ouvi esse discurso dos sentimentos, da sedução, do namoro, da fidelidade, do controlo social, da família monogâmica, da sublimação das emoções. Vocês são todos muito bons a articular palavras e a esconder ideias. Mas, como sabes, isso passa-me ao lado, é música para os meus ouvidos. A verdade que vem de ti, e que eu percebo, vem-me toda pelo cheiro. E o teu agora revela-me que tens a cabeça cheia de ideias bem sujas. Ah-ah-ah!

– Cala-te e vai-te catar senão … corto-te na ração.

– Grande fair play!

– Mudemos de conversa. Queres saber o que andei a fazer durante este mês? Comecei por estar fora. Em Paris. Paris de França.

– Que novidade! Estiveste lá só uma semana.

– Está bem. Mas, enquanto lá estive não tinha computador nem Net para poder “postar” as minhas peças para o blog. Recolhi muita informação, tirei muitas fotografias… Quando voltei, tive muito trabalho para organizar isso tudo. E, depois, havia o trabalho que ficou à espera que eu chegasse. As férias são sempre assim: chegamos descansados, mas depois de começarmos a trabalhar ficamos logo a precisar de tirar férias outra vez.

– Isso para mim não dava.

– Ah, pois não.

– E Paris, afinal como é que é?

– Bom, tem gatos como todas as cidades. Só que são mais bem-educados e mais galantes do que os que conheço por cá. Os do campo são uns grandes caçadores e não perdem tempo na tagarelice.

– Já te disse que as tuas provocações não me demovem da minha indiferença. Diz-me coisas com interesse de Paris.

– Ok, vou contar-te montes de coisas mas, primeiro, deixa-me escrevê-las e editá-las no blog. Vais ter que ter um bocado de paciência.

– Paciência é o que não me falta. E com menos conversa já me tinhas aberto uma latinha de ração. Podia ser de atum; ou… aquela de carne de galinha… que não estava nada mal, não senhora. 

- Que cara é essa, homem?
- Como? ... Que disseste?
- Nunca te vi desse modo, acredita, parece que viste coisa má.
- Não se passa nada, é apenas uma indisposição passageira.
- Conheço-te melhor do que julgas e o teu cheiro a pelo da cabra esbaforida não me engana. Estás com uma destas neuras! Alguém te fez alguma?
- Porque haveria de ser assim? Deixa-me em paz, peludo.
- Vês?! Afinal estou cheio de razão. Vocês, homens, ou não conseguem brincar, e isso já é muito mau. Ou começam a brincar uns com os outros, aleijam-se e, depois, chateiam-se, que é, diga-se em abono da verdade, como as coisas devem ser. Mas, depois de se chatearem, andam assim uns tempos como se não conseguissem esquecer o assunto. É assim tão importante para vocês a memória?
- ...
- Estás a pensar? Vês: tens que rebobinar uma data de coisas como se não soubesses que resposta hás-de dar! A vossa memória só serve para complicar. Tens a resposta na ponta da língua, como vocês dizem, mas antes tens que a comparar com todas as respostas possíveis alternativas como se estivesses a jogar xadrez. Nem vês a cara de parvo que fazes quando estás a ruminar!
- Livra-te de me voltares a ofender, ó ... ó...
- Se tivesse a tua memória, ajudava-te a encontrar uma data de mimos para me chamares...
- Cala-te, ó bigodes de piassá.
- Essa é boa: andas a vasculhar no cesto dos papéis da tua memória. Não consegues manter a tua conversa dentro dos limites aceitáveis da comunicação e do bom gosto?
- Bom! Estás mesmo interessado em perceber o que se passa com a memória humana? Sim? Ok! Quando ouves um som inesperado, ou vês um rato isso recorda-te alguma coisa, não?
- Claro! Quando vejo um rato, lembro-me que tenho que pôr-me a jeito de lhe pular para cima.
- Como eu pensava. As imagens aparecem-te e fazem-te recordar o que deves fazer.
- Vez nisso algo de errado? Os cães, que são tão parecidos convosco, também reagem assim.
- Todos os animais são assim; só o homem é que age de uma maneira diferente. Para vocês, quando se forma no cérebro uma percepção, isso significa que uma determinada combinação de estímulos do mundo físico despertou uma imagem guardada em memória. Reflexamente, desperta também uma acção que lhe está associada, por associação condicional ou operante. A diferença da memória humana, é que o homem procura activamente formar essa imagem por uma espécie de esforço originado internamente. O resultado é muitas vezes bizarro: quando procuro lembrar-me de ti, na tua ausência, consigo ver-te com uma cabeça de burro em cima desse pescoço arrogante.
- Continua, que vais bem.
- Umas vezes, vemos cavalos com asas e chamamo-lhes pégasos. Outras vezes, vemos cavalos com um chifre, e chamamo-lhes unicórnios. O mais interessante é que a maior parte das vezes não precisamos de nos esforçar para ver alguma coisa: basta evocar as palavras!
- É por isso que passas o tempo a falar das coisas que gostarias de fazer. Assim, já não tens que as fazer, não é?
- Cala-te e ouve. A memória são as palavras. E para nos lembrarmos, estamos quase sempre a falar para dentro de nós mesmos.
- E é assim tanta a necessidade de se lembrarem?
- Não sei. Se há alguma necessidade, ninguém se lembra dela. As palavras comandam sozinhas a memória


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