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"Visões da floresta" in O Tremontelo, 14 de fevereiro de 2006, posted by Perdido @ 23:01

 

Estou sempre a pensar que não se pode conhecer a floresta a não ser por visões.

Quando era pequenino esperava crescer e ter tamanho para ver as coisas. Para mim a floresta era o Monsanto, a mata de S. Domingos, a Serafina, os Montes Claros, a Luneta dos Quartéis.

Fim de semana, geralmente ao Domingo, com farnel e manta de por no chão, era brincar a montar uma cana fantasiando um garboso corcel, ou, o que ia dar no mesmo, ler as idênticas aventuras no Cavaleiro Andante trazido na véspera pelo Sr. Américo juntamente com o Século. Claro que o cheiro concreto da resina dos pinheiros e dos eucaliptos misturava-se, nessa altura, com as cores e os estampidos épicos colhidos na leitura visual dos quadradinhos e que ressoavam epicamente na mente. As cavalgadas e falcoarias continuaram mais tarde nos pinhais do meu avô materno, mais urdidos de fetos e de outra vegetação rasteira - o mato - condimentadas com as narrativas aventureiras de Salgari, Walter Scott e outras leituras menos visuais. A floresta evocava sempre as emoções da aventura, como, nos primeiros campos de férias, a busca nocturna dos gambozinos, com o coração ao pé da boca, esta sempre muda para não dar parte de fraco. Mais tarde ainda, procurava as grandes concentrações arbóreas para, nas clareiras banhadas de luar, fazer as primeiras incursões experimentais no domínio da partilha amorosa: ilhas nos aglomerados urbanos, como a mata de Benfica, o jardim da Estrela, Campo Grande ou Estufa Fria, ou grandes extensões da mata rarefeita nas dunas entre a Trafaria e a Caparica.

Floresta a sério, conheci-a em África. Fui mobilizado para a guerra colonial e atirado para Angola com cento e tal miúdos como eu.

Despejados em Luanda, com o nariz a tresandar a sal e a vomitado, fomos metidos em camionetas e viajámos aturdidos até Nova Lisboa; dali para o Luso apinharam-nos em carruagens de comboio - para que servia afinal as dez reguadas levadas doze anos antes por não saber de cór as estações e apeadeiros da linha Benguela-Luso?

Finalmente no mítico Leste, fomos metidos em viaturas militares e devidamente instruídos pela Companhia que nos escoltava sobre os procedimentos e cuidados a ter em caso de paragem, mina, golpe-de-mão ou flagelação. O cuidado principal era encontrar uma árvore para esconder a cabeça e deixar que a escolta cuidasse das nossas vidinhas.

Tive oportunidade de me familiarizar com diversas árvores africanas na estrada asfaltada que nos conduzia até ao Dala. Retenho ainda os primeiros odores daquela seiva intensa e fogosa, a que se juntaria mais tarde os do capim e das queimadas, e todos os outros da paleta africana. Na ida para lá, a paragem pelo Dala foi de curta duração: uma breve passagem dos oficiais pelo gabinete de Operações e Informações para ver as cartas topográficas espetadas na parede a corresponder em toda a sua latitude à extensa área que era o território do batalhão e, em particular, o polígono da nossa Companhia atravessado de Sul a Norte pela única picada a que em toda a vida pude chamar ´a Picada´, espécie de recta a cair do mapa na perpendicular e claramente definida por dois pontos: Luma Cassai e Alto Chicapa.


Entrámos na picada e afundámo-nos no mato. A floresta veio de novo ter comigo. Não tínhamos andado muito, com sorte circulava-se a trinta à hora, quando lobrigo a meio caminho entre a picada e o horizonte uma séria de construções exóticas, uma espécie de templos de pedra a resplandescerem de oiro no interior da selva; passados uns instantes, aconteceu o efeito maravilhoso de ver vários elefantes vistosamente ornados que transportavam palanquins em cujo interior balanceavam estranhas personagens com uns turbantes engraçados.

Das muitas imagens que vi pouco recordo, mas resta-me de tão esfumada memória a crença de que vi lá aquilo que, atendo-nos os factos pelo que valem num plano racional, não devia lá estar.


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