Exposição ao sol 

 

Estávamos, eu e o Borboleta, expostos ao sol junto à porta da cozinha. Eu, estendido na liteira azul com a cabeça ao mesmo nível dos pés; ele, com a cabeça recostada nos chinelos que eu, indolentemente, deixara cair para o chão. Depois de um longo silêncio, em que vagueara perdido pelo mundo imaterial da mente quasi-adormecida, pareceu-me ouvir o Borboleta dizer:

"Porque é que não nos contas também as histórias que contavas aos nossos avós?"

Tentei sintonizar a mente em estado de confusão crepuscular num espaço e num tempo adequado ao que me parecera ter ouvido. Não devia estar a sonhar, mas também não tinha a certeza que já tinha aterrado no mundo físico real. Encarei a cabeçorra do Borboleta, que olhava na minha direcção, e ainda fui a tempo de reparar no seu olhar interrogativo. As palavras dele já tinham dado a volta ao roseiral, circulando entre os troncos da pereira e da oliveira, e retornaram aos meus ouvidos de modo a permitir-me anotar o ênfase que ele tinha posto no "também".

"As das luzinhas que punhas nas árvores por causa dos astros e dos deuses", insistiu. O que de imediato me fez recordar o Tigre e o Areias ao meu lado, com o An Jie e a Julieta do outro, a ouvirmos as estórias do Rodrigo no Natal de 2006. "Olha lá, explica isso dos deuses que a malta toda cá da tribo não percebeu patavina".

Não perceberam, nem vão jamais perceber, cogitei. Também eu, ainda hoje, me vejo à nora a compilar, a organizar e a decifrar os escritos do Rodrigo. E atabalhoei uma explicação para descarga da minha consciência e uso instantâneo: Deus é uma estrutura neuronal complexa, inscrita pela evolução no cérebro humano. Tu és um gato e só percebes aquilo que o cérebro de um gato está apto para perceber.

"Nós, os gatos, somos pacientes. Podemos estar horas imóveis no meio do prado à espera que um pequeno animal se mova, não podemos ?" Anuí com um aceno de cabeça. "Então também estaremos aqui à tua roda o tempo que for preciso para te ouvirmos. Fica com isso dos cérebros para ti e fala-nos do que gostamos de ouvir. Mesmo que fiquemos sem perceber isso dos deuses, ficaremos de certeza a saber um pouco mais dos bípedes pelados."

A resposta do Borboleta desorientou-me devido à sua perspicácia. Nunca tal me tinha ocorrido, embora o Rodrigo por várias vezes me tenha advertido de que os felinos nos estudavam atenta e assiduamente. Provavelmente, conversavam estes assuntos entre eles. Nas nossas costas, claro. Concordei no meu íntimo que, na realidade, a melhor maneira de compreender o humano é estudar os seus labirintos mentais.

Está certo. Podemos combinar isso. Reúne lá a tua malta no princípio da tarde, enquanto ainda está calor, e eu vou contar-vos todos os dias um pouquinho da história da humanidade e dos deuses que nos acompanharam nessa história. Sabias que os egípcios tinham deuses que eram gatos?

"Saber, não sabia. Mas não foram os únicos. A maluca da Madona considera-se uma diva, vê lá tu." E, dizendo isto, o Borboleta abanava o rabo de uma forma com o mesmo significado com que nós humanos abanamos a cabeça a dizer "não há pachorra!"

E a Madona, que dormitava à sombra do espinheiro-alvar, levantou-se e, de cauda em leque, passou à nossa frente a pavonear-se, em poses de passerelle. E a conversa desta vez ficou por aqui.

 

 

 

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