(...) Irei começar pelo tema confinamento. Trata-se, é claro, do confinamento ditado pelas pandemias: A do COVID, certamente, mas também aquela outra pela provocada por outros virus, igualmente transmitidos em exclusivo de ser humano para ser humano, e para a qual tenho vindo a alertar desde há largos anos. Não se tratou de um confinamento apenas entendido como o cerrar as portas e as janelas que separam do meio social exterior, mas de um confinamento que agravou a minha condição de autista, muito rara e nunca descrita nos manuais e nos artigos científicos, conduzindo-me a uma situação quase de locked-in (encarceramento no interior da mente). O confinamento teve ainda uma dimensão física: fiquei limitado pela cerca do Sítio do Tremontelo de onde saí uma dúzia de vezes em mais de um ano. Aqui aprofundei a ligação ao lugar esforçando-me por abandonar a condição animal e viver a experiência vegetal do enraizamento no solo, o que me trouxe alguns problemas de saúde como ter apanhado fungos nos dedos dos pés. Os telefonemas e as mensagens foram banidos e o círculo de contactos reduzido a meia dúzia de familiares e vizinhos e a alguns prestadores de serviços variados, incluindo transportadores à porta. (...)

Do último postal

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Confinar (do latim cum + fine) : andar perto do fim.

 

Dito de outro modo: confinar é andar para a frente e para trás, com o sentimento azedo de quem se enleou na desesperança do encarceramento, a rondar a cerca da sua jaula. Confinar é estar na excitação dos confins da vida e, ao mesmo tempo, estar na angústia das cercanias da morte, na proximidade dos finados.

Há quem pense que o confinamento é um movimento retrógrado, mais próprio da terceira idade do que a vida activa. Que é um retiramento do mundo na iminência do regresso à terra. Que é um regresso ao ovo. Não é de todo errado o que é completamente errado. O confinamento não tem idade, dá-se na extremidade do tempo. Não eram velhos, eram revolucionários, e alguns muito jovens, os que se retiraram e depois se relançaram no mundo e na história do homem: Zarathustra vivendo uma década, não se sabe ao certo, se no alto de uma montanha, se no deserto; Sidarta levando uma vida mendicante fora dos berço dourado das suas origens; Moisés subindo ao cume do Monte Sinai; O jejum e a tentação de Jesus no deserto; O retiro de Maomé para o Monte Hira.

O meu confinamento foi, e é, somente meu: aconteceu por auto-imposição e deu-se já numa época anterior ao aparecimento do Covid-19 e nada teve a ver com a procura de qualquer iluminação. À guisa de explicação, devo confessar que se prendeu com o afastamento de sucessivas epidemias de virus mentais que assolaram e me devassaram o ecossistema mental e tornaram a vida social insustentável e perigosa, na autoestrada de dupla via, a das redes sociais e a da realidade mundana.

A fase inicial desse confinamento, devo declará-lo por reverência para com a verdade, foi muito agradável e durou anos. Foi uma espécie de afastamento do habitual e um retorno bucólico à natureza (Nos patriam fugimus; tu, Tityre, lentus in umbra, Formosam resonare doces Amaryllida silvas..), a um estado que senti conatural com a legítima natureza humana tal como está conservada, supostamente, nos nossos prehistóricos genes. Em contacto com a natureza, o corpo estafa-se, a mente retrocede e repousa, e o cérebro agradece. A eliminação dos estímulos urbanos, dessa Lisboa que ficou para trás, ligeiramente presa por uma memória tenaz, e a rarefação do contacto social em termos físicos, o foco na natureza e a actividade física praticamente eliminaram o estresse, colhendo oxigénio bastante para estimular uma respiração profunda, copiosa e restauradora. O corpo, em paz consigo mesmo, recolheu beleza e conforto gratuitos dos gorgeios da passarada, dos matizes variegados dos verdes da floresta, do arco-iris das flores primaveris, dos múltiplos rubros outonais, da frescura sedosa das manhãs, do espectáculo repetido no dia a dia dos nasceres e dos pores-do-sol.

O que tem de bom, tanto o retiramento do formigueiro social, assumido como um certo entendimento de bem-estar material e das acessibilidades a bens e serviços, ordenação jurídica, moral e cultural dos comportamentos, os entrelaçados,emaranhados, relacionamentos interpessoais, como a ocupação do tempo em actividades pedais e manuais, é a acalmia dos maus augúrios ou da simples chateza do telefone, da palestrice bacoca da televisão e da devastação emocional e intelectual das telerredes/terroredes sociais. Talvez um dia voltasse, de quando em quando, pois a separação da natureza, e o seu regresso a esta, estão inscritos, independentemente da forma que assumem no tempo e no espaço, no ciclo de vida imutável da espécie humana. Não tivesse rebentado a pandemia!

Se já me havia confinado do mundo exterior, foi aí que senti o mundo exterior confinar-se de mim. 

Como se todos tivessem partido e me tivessem deixado para trás.

Teria entrado no meu horizonte de eventos?

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