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 20200120 expat

 

Deu-me para isto: ir de vez em quando a Telheiras. E tudo começa porque, não indo a Maria à montanha, vai a montanha à Maria. Também há outras razões, como o aniversário com festa-surpresa da Sãozinha lá para os nortes de Mafra. E uma razão acrescentada que dá para diferentes combinações de montanha e de maria, que é poupar-se energia, que é cara, e o mau tempo requer consumo dela. Assim, consumindo juntos, cá nos aquecemos melhorpoupando as energias para fins  bem mais nobres e para alturas mais frias. Já não falo da chatice do regresso e da minha falta de gosto pela condução. Assim, vou ficando por cá, não em férias, não exilado, mas na condição de expatriado. Sou um expat.

Os expatriados sofrem de diversos problemas. Um deles, o de integrarem-se  na cultura local, o que, por vezes, revela-se o décimo terceiro trabalho de Hércules. Imaginem-me na cidade a tentar viver como um urbanita. Ainda consigo fazer uma passeata até às hortas colectivas de Telheiras, ou passear-me nos jardins que circundam a zona do Metro. E é um pau! Depois, atrapalho-me  com o atravessar as ruas lotadas de carros, as buzinadelas constantes, os cheiros dos restaurantes, o  garrote da densa atmosfera local, os anúncios. Os anúncios, sim, que uma cidade é um labirinto caótico de sinais, de signos, de símbolos e de publicidade. E eu só sei ler o que me diz a passarada, a orientação das páginas das folhas das árvores quando lhes sopra o vento, as núvens que passam, os primeiros pingos, os néons de luz solar que se entrelaçam na ramagem do arvoredo e a disposição dos meus gatos.

O segundo problema que me vem à lembrança é o da comunicação. Quando falo de flores, de ervas, de árvores, de jardins, de florestas, todas essas palavras evocam na imaginação dos meus interlocutores, ou filmes que viram, ou periódicos que leram, ou folhetod de publicidade turística de destinos exóticos, ou letras de canções dessa desgraça a que hoje se chama música. Falar de erva é tabú, vai logo o assunto para consumos. E se eu consumo esta ou aquela erva nas minhas infusões, uns perguntam-me se dá moca, outros se dá pedra, e eu não sei se me apetece mais responder à mocada, se à pedrada. E não há tradutor Google que me safe nestas atrapalhações. 

O terceiro, é o tempo da expatriação. Como não leva mais do que um fim-de-semana, não me dá tempo suficiente para me aculturar ou para aprender a linguagem urbana. E, sendo assim, torna-se cada vez mais penoso e inglório o esforço de readaptação.

Finalmente, um problema de natureza existencial. Fui expatriado com os meus tenros vinte aninhos para "algures na Região Militar de Angola - Zona Leste" para "cumprir o serviço militar". Não pertenci a nenhuma força especial nem às forças de quadrícula que ocupavam e policiavam o território e as gentes. Fazia parte de uma Companhia de Cavalaria independente que mais não fazia que andar de um lado para o outro a tapar buracos e a render tropas em trânsito para o Puto. À pala disso, corri a pé a Lunda Sul, o Moxico, o Bié, o Kuando-kubango, sofri bastante com "Lisboa", com os comandos dos batalhões anfitriãos, com os filhos da puta da DGS, com a OPVDCA e com os chefes de posto, mais do que com o MPLA, o ELNA ou a UNITA, os exércitos das movimentos de libertação. O melhor do meu tempo, apesar da guerra, foi andar no mato, longe dos SITREPs e das formaturas, na companhia afável e culta dos Lunda-Tchokwe, dos oficiais catangueses ("ailleurs au Congo") formados em Bruxelas ou dos meus bravos soldados, ver nascer e pôr o sol sempre à mesma hora, as quedas do rio Chicapa, as palancas e pacaças a pastarem nas xanas dos rios, as sombras das árvores desenhadas no horizonte, o cheiro das queimadas ou das fogueiras das sanzalas, os putos ranhosos que nos esperavam a gritar e a cantar nas proximidades dos aldeamentos, as lavras de mandioca, as raízes amargas que desenterrávamos para estancar a sede. Eu sei lá que mais, isto é apenas o que consigo lembrar e exprimir, mas não esqueço, está bem viva e actual, a experiência vivida, este não sei quê que só dá para resumir com a palavra saudade.

Fui repatriado com a sensação de ser novamente expatriado. Mais tarde, descobri o terreno onde criei o Sítio do Tremontelo, com todas as plantas e os meus pequenos liõezinhos. E vi que era bom. E descansei.

 


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